VII. Safadez

Caía-me, sobre o ombro, a alça larga da camisola verde água. A única coisa que trazia vestida naquela manhã.
Os raios de sol incidiam sobre o meu cabelo, dando-lhe uma tonalidade viva.
E foi naquele clima de borboletas e raios de luz que fiquei a olhar as fotografias instantâneas, jazidas sobre a cama desfeita, ainda com marcas de sangue.

A minha fonte.
O pormenor dos lábios cheios, secos, engelhados; semiabertos. Deverias estar a falar quando tirei a foto. O fumo que a câmara captara era visível, e os teus dentes, ligeiramente mais alto o direito do que o esquerdo, já marcados pelo tabaco, convidavam a tanta coisa. Talvez estivesses a divagar sobre a tua vida ser uma merda e como estavas insatisfeito. Sim, era isso. Estavas sempre a resmungar sobre isso. Nunca me deixavas tomar conta desses pensamentos por inteiro.
Quando sorrias, e era raro fazê-lo, eu apaixonava-me um pouco mais. Como poderia eu passar a minha vida toda sozinha, sabendo que aqueles lábios me pertenciam? Sabendo que sorriam quando me beijavam?
Estiquei o braço frio para recolher os segundos espalhados e perscrutei o teu olhar.

Os teus olhos.
Os olhos de um homem louco, mas grandes e arredondados; meio asiáticos, ainda assim. Os olhos sonhadores, sem fundo, negros como a noite. Tao lindos, meu amor.
Não gosto de falar dos teus olhos. Gostava de os ver. Eram para serem olhados por todos. Vistos por alguns. Apenas enxergados por mim.
Nos teus olhos nascia o sol, sabias? Eras o nascente, para onde apontaria sempre.

O teu pescoço e as marcas que deixei nele.
Aquela foi uma noite ávida, urgente. As nossas noites eram sempre assim. Violentas e tempestuosas. Uma dança bélica entre a carne a alma; as mãos no pescoço, nos cabelos, nos seios, nos quadris. Os teus dedos marcados no meu peito, as tuas unhas nas minhas pernas; as minhas nas tuas costas. Eram adivinháveis as nossas noites… as nossas tardes, as nossas manhãs, mas nunca iguais. E as marcas que ainda restavam, então esverdeadas, na minha pele, como líquenes leves, submergidos, eram apenas as memórias daqueles beijos de ameixas de S. João, no teu pescoço, em direcção ao peito. Daquelas ameixas que saboreávamos encostados ao muro de cimento, sobre a sombra das roseiras amarelas, que nos atraíam, tão bem quanto atraíam as abelhas. Daquelas ameixas tão doces e sumarentas, que escorria o néctar sobre os pulsos, em direcção aos cotovelos. E queixavas-te que fazia comichão. E deixavas-me sorver esse sumo. Brincávamos tanto… e que fosse apenas sumo de ameixa a escorrer-nos pelos pulsos.
Sorri e atirei o retrato ao chão.

As tuas mãos e o sangue que desenhava o contorno das tuas unhas.
Era meu, esse sangue. Era teu e era nosso. A cicatriz ainda era uma crosta fina. Na polpa da base do polegar da mão esquerda, estava a tua inicial, desenhada com a navalha. A minha deveria estar cravada na tua mão também. As tuas mãos eram tão morenas, que a cicatriz iria ficar tão rosada e visível. Que maldição que carregarias em ti para sempre. Que mantra que eu rezaria todas as manhãs.

O teu ventre.
Onde eu ouvia a vida em ti, sempre que repousava a cabeça. Sentia o teu batimento cardíaco, viril, acelerado. Brincava com os dedos sobre a linha de penugem negra em direcção àquilo que unia as carnes.

E tantas outras fotos da tua pele, do sinal nas costas, das marcas que decidiste tingir em ti; que decidiram tingir em ti. Do cabelo ao vento, à chuva, tão estival por vezes. Do nariz grande e pronunciado, da barba no pescoço, das orelhas pequenas. Dos ombros largos, ósseos, dos braços fortes e, no fundo, frágeis. Das cicatrizes nos joelhos, feitas noutros tempos, quando eras rei do recreio, ou quando te ajoelhaste sobre os estilhaços de vidro para socorrer àquela ninhada de gatinhos na fábrica abandonada.
São tantas as fotos que tenho tuas. E tu estás… tu estás morto.

Eram noites voluptuosas, as nossas. Mas havia tanto amor. Haverá sempre. 

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Quando lia contos de fadas, eu imaginava que aquelas coisas nunca aconteciam, e agora cá estou no meio de uma! Deveria haver um livro escrito sobre mim, ah isso deveria! E quando for grande, vou escrever um...
L.C.