Na pele que chove,
A escura noite só,
Espelha-me só.

Alice

«Sou uma emoção estrangeira»

Há uma música do Povo
Nem sei dizer se é um Fado
Que ouvindo-a há um ritmo novo
No ser que tenho guardado…
Ouvindo-a sou quem seria
Se desejar fosse ser…
É uma simples melodia
Das que se aprendem a viver…
Mas é tão consoladora
A vaga e triste canção…
Que a minha alma já não chora
Nem eu tenho coração…
Sou uma emoção estrangeira,
Um erro de sonho ido…
Canto de qualquer maneira
E acabo com um sentido!

Fernando Pessoa

ave amore: I

É um mistério, este, meio triste, meio alegre, o de gostar-te. O de olhar-te, sol d'alva, nas manhãs em que o orvalho me beija os ombros leves e me cai sobre os olhos – plumas – nas molezas de quem amou a lua por dentro. De lábios dormentes e pálpebras desejosas de florirem.
É um segredo, este, meio meu, todo nosso, o de sorrir-te, inocentemente, na nudez de quem solta os dias, e agarra os quereres, lascivamente, de unhas cravadas na pele...
A pele – esse véu fervente de tudo quanto um Homem guarda dentro de si. De tudo e… e de nós. De espaços intemporais e lábios vorticosos, entre suspiros sedentes de mares mais revoltos e de céus mais altos.
É assim que vives dentro de mim; é desta forma que te sonho; te vivo como se vive, sem se dar por isso.

Tua,

Desenhando um eixo de luz, flutuavam sobre bolhas de pensamentos. Fundidos entre sonhos, e por entre ruas que faziam íntimas  –  como se faz a uma casa  –, vivam da única forma que sabiam: contavam mentiras e brindavam aos sorrisos que faziam seus, tão íntimos  – como se faz a um quarto.
Surripiavam flores dos canteiros anónimos e guardavam-nas num espectro eterno; guardavam-nas em caixinhas coloridas, cheias de memórias  –  grãos de água e gotas de areia
Tocavam no ar e nas nuvens... e na relva e na casca áspera das árvores centenárias e selavam o mundo num olhar rápido e palpável, urgente de toques e anseios; o seu mundo, que faziam muito seu  – como se faz a uma cama.

無限のアカウント


Cobria-lhe o cabelo uma fina camada de gotículas de chuva, semelhantes a rubis – brilhavam, dando-lhe um ar irreal.
Corria apressadamente – tão apressadamente quanto os pezinhos mordazes lhe permitiam –, na vaga tentativa de fugir da chuva, em direcção à estação, onde estava previsto o comboio chegar, por volta das cinco da tarde.
Estava atrasada – já passavam dez minutos da hora combinada
Aquela tarde de outono – de céu emoldurado por dois arco-íris –, mais solarenga do que o costume (e, ainda assim, abençoada pela chuva), dourara-se com o passar das horas do relógio da torre da Sé. E ela esquecera-se completamente de que, secretamente, teria de esperar a chegada do estrangeiro à estação. Por isso correu, mesmo estando ciente de que não chegaria a tempo.
E, de facto, não chegou – o comboio dera entrada na linha e partira entretanto.
Por isso sentou-se – cansada –, fazendo sua companhia o único cigarro que lhe sobrava no bolso.
Ele sou eu, em pessoa. Outra. Mas sou eu.

ベース

As melodias ofegantes que íamos tomando ao chá escorregavam-nos pelos pensamentos, pelos lábios e, de gosto acerejado: elevavam-nos às figuras de deuses omniscientes. Davam a ideia de sermos esféricos, simples, e de ainda vivermos dentro de um sentimento quente e intrauterino. Um sentimento de leveza e paz: tão doce quanto o chá que nos aquecia as almas.
Uma sensação de catarse percorria assim as pontas dos nossos dedos, e as palavras que escapavam por eles – sob a forma de gestos florais, muito contidos e infantis.
A chuva (se Deus a dava) chicoteava os vidros das janelas, de onde escorriam os vapores do chá, e nós lá estávamos: naquela atmosfera tão natural e açucarada.
Conversávamos, sonolentamente, sobre o inverno e sobre meias: diga-se que, no que toca a meias, não foi uma conversa tão solene assim. E íamos bebericando da música e das chávenas de chá, à medida que o tempo passava. E, rapidamente, nos apercebemos que já não falávamos de meias, mas de passos.
E era a consciência que nos assolava; a consciência que nos pesava na cabeça e nos peitos cheios de ar e de esperança; consciência da inconsciência da passagem do tempo, sobretudo. E o quanto tudo isso era absurdo.
Então, resfolgaste, encolheste os ombros e disseste, sorrindo, com muita simplicidade: nunca seremos suficientes para o que nos rodeia. Pousaste a chávena, levantaste-te do sofá de couro verde e dirigiste-te até à janela.
Estavas certo disso: como era habitual, conseguias condensar os maiores turbilhões numa frase e num sorriso, fazendo-os eclipsarem-se, numa ilusão.

Varanda


Eu estou bem. Quase tão bem. Vê como é bom voltar a dizer.

Ao espelho, retoco as feridas, como se fossem simples manchas de tinta.

My, my true love

Alice, by Coteau Twins

私と私


Soltei o olhar da razão que me fazia ver o mundo (a mesma razão que me consumia nas noites de deambulação pela cidade). 
Soltei o cabelo (que trazia preso, no topo da cabeça) e sacudi-o, criando, em torno de mim, uma aura incandescente, acentuada pela luz do lampião.  
Outrora, soltara-te do peito  como quem abre mão de um pássaro e lhe dá o mundo  para te ver, depois, fugir por entre os fumos da cidade, naquele teu vestidinho preto ameninado. 
Foste sempre pouco, sempre incompleta e insaciável  dizias precisar de pão para a alma  e, sempre inconsciente de que não medias mais do que uns míseros cento e sessenta e quatro centímetros, afirmavas ter sonhos presos por fios de cem metros, em direcção ao Sol (como se cem metros fosse muito).  Mas os teus sonhos não eram balões (não te puxavam alto, não te faziam ver o panorama horizontal da Terra); não te esquentavam o sangue e agrilhoavam-te à terra. 
Acho que, no final de todas aquelas somas e subtracções que eram os nossos desatinos, admiravas-me, mesmo sendo eu uma âncora; era eu quem te agrilhoava, eu, o teu maior sonho.  
E, cometendo novamente o erro de cair na impossibilidade lógica de te fazer ficar, prendi o olhar no céu, ciente daquilo que me consumia o espírito, o fôlego e as solas das botas (agora exaustas), e deixei-me ficar ali, suspensa em ideias desmesuradas, de sabor amargo a tabaco indiano.  

Hoje aprendi que...

Toda a arte nasce da fusão, essa sim mágica, entre técnica perfeita e alma profunda.

entre conversas com o P. Chagas Freitas...

七文章、七点

Um dia, gostava de inventar uma teoria; uma daquelas teorias poeticamente ridículas. Tão ridícula quanto as já lidas por aí; mas sem que perdesse o seu “Q” de arte, e passasse a ser uma composição de meia-dúzia de notas soltas. Mas, mesmo assim, não seria mau, nem que fosse por uma vez, poder quebrar a armação de clave das ideias modernas; conjugar sustenidos e bemóis, onde tudo se quer consonante.
Compor uma teoria dessas, seja qual for o momento em que é feito, não é fácil; aliás, nunca é, para mim, rápida a decisão a tomar sobre o que escrever.
Acho que, se pudesse, escreveria algo sobre uma rapariga-elefante; algo que pudesse inventar com as cinco pautas da minha própria memória, que, não sendo de elefante, é a de uma rapariga que perdeu a memória da última vez que chegou à prateleira onde se guardam, em latas de biscoitos sortidos, as decisões.
Talvez eu própria seja a teoria de que preciso, por ser um misto de indecisões e de memórias feitas de tinta-da-china; uma teoria poeticamente absurda e descabida.
Da próxima vez que chegar à lata dos biscoitos sortidos, guardo lá esta ideia; talvez nunca mais lhe chegue, ora pois, e toda esta indecisão acabe por se perder nas brechas da memória que não se quis de marfim.

Hoje preciso dum «pois», preciso dum «sim»...


Não sei o que faça deste copo vazio e destas beatas. O tempo passa despercebido, sem me levantar o olhar e sei, cá dentro, dolentemente sei, que continuo a peneirar ar e vento, na vaga esperança de descobrir pedras preciosas presas por entre os dedos enlameados.
Hoje sinto-me assim: desamparada sobre as ondas de um mar revolto e gelado de outono. Sinto o iodo e a nortada que me estala na face. Ah! Como gosto destas noites em que prendo olhares alheios à minha figura alienada de cabelo ao vento. 

XXX. Sensibilizar

Beijos enternecedores que me arrebatam sob a forma de memórias presas pelos fios da saudade. 

XXIX. Vocabulário

Vocabulário: conjunto de palavras que nos unem e, na mesma dança violenta, nos afastam.

XXVIII. Silêncio

Vinha no jornal
Que hoje tinhas pássaros
No corpo que habitas.
Dizia, em letras maiúsculas,
Bem negras e gritantes,
Tão como os teus olhos,
Que da tua alma cheia
Transbordavam asas
E chilreios de épocas
Tão infantis quanto nós.

Vinha hoje no jornal
Que os teus lábios cerravam
O que a tua alma não.
As letras mais pequenas,
Enganadoramente sussurrantes,
Diziam que a vida de cão
Se mantém.
Fala-se de que perdeste o comboio,
Não tens guarda-chuva
E, em silêncio,
Precisas de alguém.

XXVII. Palavra

As palavras são a nossa condenação. Com palavras se ama, com palavras se odeia. E, suprema irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras!

Eugénio de Andrade

XXVI. Saia

Saia dos meus três anos... saia dos meus dezanove também.

XXV. Travessura

Nunca fui de travessuras.
Era sossegada.
Passava horas a lavar paninhos no tanque,
Com o sabão rosa que a Avó me dava.

XXIII. Sim

... calei-te:
         ...
- Beijaste-me.
- Sim. Silêncio! Quero ouvir o vento.

XXII. Carácter


Só me lê quem me conhece. Só me conhece quem me lê.

XXI. Sacrifício

Quebrei-me, por te amar inteiro, por inteiro.


XX. Amadurecer


Formavam-se, nas nuvens, dois arco-íris. Mas era preciso deixar de ver o mundo para se ver o céu. E assim fiz. Pousei no chão enlameado os figos amadurecidos que carregava no colo e sentei-me, ali mesmo, na pedra molhada do degrau que dava para a cozinha velha.
Olhei-os, escondendo a cegueira no fundo do baú, na prateleira mais alta de todas, onde os meus cinco pés e meio não a alcançariam. Depois fechei as pálpebras, para ver melhor. Frugalmente, e sem grandes floreados, a chuva beliscava-me a face quente. O sol morno de poente adocicava-me as pálpebras finas, quase transparentes, recordando-me de braços mornos, decadentes.
Para mim, o amor era, sempre fora, só isso: um pôr-do-sol morno, decadente.

Quando Vier a Primavera






Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma

Se soubesse que amanhã morria

E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.


Alberto Caeiro, in Poemas Inconjuntos

XIX. Beijar

Sinto-me como se já não sentisse nada. Aliás, sinto mesmo que é isso que sinto: nada.
Preciso mesmo deste inverno que se avizinha. Preciso de sentir a chuva a lavar-me o rosto. Que o vento me sacuda os cabelos e que as minhas mãos gelem, até que doam.
Só posso acolher, de braços abertos, uma estação tão tempestuosa e mal-amada como eu. Só posso recebê-la no peito como quem recebe, em casa, um amigo, há muito distante. Só posso beijar este meu lado natural e tentar aquecer-lhe as faces, em busca deste tempo perdido que foi o tempo em que amei sem saber.
E agora, que sei que não amo mais, dói-me. Porque os pesadelos continuam a perseguir-me, qual animal indefeso.
Já só espero voltar a encontrar-me noutro corpo.

My Funny Valentine


XVIII. Nunca

A chuva caía sobre a rua de paralelos incertos. No fumo lúgubre daquela manhã, respirava-se os vapores da cidade dos becos escuros, das casas em ruínas, do jazz abandonado. Aquela cidade perdera o brilho, perdera a honra do amanhecer em glória, perdera o deambular devaneador das promessas rubras.
A cidade tornara-se azul permanentemente, o céu cinzento e as tintas de todos aqueles edifícios, outrora magnificentes, sumptuosos, escorriam, em direcção às grades do esgoto. As pedras deslavadas perderam o calor do sol e as aves fugiram sem aviso prévio.
Os transeuntes daquelas ruas perderam a individualidade. Eram todos iguais, vestiam-se todos em tons neutros. Mexiam-se, sem nunca se moverem. Atravessavam as ruas e eu, sem nunca reparar nas cores dos semáforos, via-os. Quis-me parecer que iam todos para o mesmo lugar: para lado nenhum.
Não tinham motivos. Não podiam ter. Acabara-se a ideia do sonho. Já nenhum fio de vontade os prendia à vida.
Não havia um único ser-vivo naquela cidade. Morreram todos. O que existia eram sombras de seres. A sombra de serem alguém. Eram coisas que existiam ali, sem quaisquer propósitos.
A inverosimilhança de se tornarem donos das suas figuras espectrais agredia-me. Também eu já não me encontrava, não mais, ali. Já não era dona de nada, como antigamente fora. Já não podia pedir nada, por me terem tirado tudo: as cálidas promessas de banco de jardim, o trompete que, todos os dias, me brindava com uma interpretação da «Nature Boy», de Nat King Cole. Era desafinado, por vezes, mas era tão familiar e acolhedor. Era um pouquinho de casa.
Eu soube, naquele dia, que nunca mais ira viver no mundo que me tinha sido apresentado naquela cidade, outrora nossa. Eu soube que se fechasse os olhos, já nem te veria, já não te ouviria a citar Pessoa e a louvar Camões ou Florbela. Eras tão deles e eu tão tua e, naquele momento, tão de ninguém, como se o meu mundo fosse então composto por partículas atmosféricas que se fixavam aos meus pulmões, impedindo-me de respirar. 

XVII. Colaborar

Gosto quando parece que as coisas jogam a meu favor; quando a vida me dá a água e o copo também.

XVI. Prover

Tudo em mim é eco. Sou feita deste espaço vazio, de tudo o que toquei, de tudo o que vi; é isso que a minha vida é. 
Tenho a barriga vazia, os bolsos rompidos, a mente dispersa, o coração abandonado. Estou desprovida de saudades, acabaram-se os cigarros que me ajudavam a matar o tempo e ocupo-me com as emoções alheias que os livros me dão. É disso que faço as horas que passo a olhar as paredes, as riquezas das loiças de cristal, as molduras de prata, os móveis retorcidos. 
Segui a luz errada e finjo para mim mesma.

Da minha janela...

I get what I want, then I never want it again

XV. Responsabilidade






E é quando me ponho a pensar que chego à conclusão de que sou responsável pelo que não fui; pelo que não sou.

XIV. Branco

Tens as mãos geladas e os dentes cerrados. O olhar posto em debandada, arrepiado. Arregalas os olhos, admirado com a corrente selvagem das águas deste rio em que nos afogamos. Tudo o que leio em ti é loucura e marcas de café e a necessidade de fazer o teu mundo correr tão avidamente quanto este mesmo rio que vibra sob os nossos pés. A necessidade de fazer o teu céu tão claro e tão leve quanto o fumo do teu cigarro, nesta manha fria. A necessidade de fazer chuva (e eu que a entendo tão bem) e de criar algo intemporal.
Porra - dizes-me -, é tudo tão rápido.

XIII. Tinta

Numa janela sobre o Porto pintado de magia e absinto, voou com o olhar negro as luzes do cais. De asas cansadas, pousou o olhar lasso na folha de papel virgem, adormecida sobre o parapeito de madeira azul lascada.
Mergulhou o dedo fino no copo de água e desenhou sobre a folha. Os traços afluíam todos numa folha tosca, infantil. Voltou a mergulhar o dedo e retocou o desenho.
Olhou o copo dos pincéis. Escolheu o que lhe pareceu mais delicado. Acariciou a face com as cerdas escuras, sujas de ocre seco na base. A sua pele pálida contrastava bem com o pincel. Houve tempos, em que também o seu corpo era uma tela…
Pousou a ponta do pincel sob o lábio cheio, gretado. Voltou a fitar o céu e a música que coloria aquela noite, vinda do coreto. Mordeu o pincel já, de si, cheio de marcas de indecisão.
Voltou a mergulhar na sua consciência. Embebeu o pincel n.º 4 no gobelet de tinta-da-china e pousou-o levemente sobre a base da folhinha mal desenhada. A tinta negra diluiu-se, deixando uma matiz de fundo do mar visitado pelo sol. Raiada, muito calma, tão silenciosa…
A folha cresceu, logo a li. Ganhou dimensões que ultrapassavam o tocável. Tornou-se tão bela, espelhando todas as estações que habitavam dentro do seu coração. Todas as estações lhe eram assim: líquidas, escuras, estéreis.
Fechou a janela e deitou-se na carpete vermelha de arraiolos que resgatara do sótão. Olhou o tecto, coberto de pássaros, também eles desenhados da mesma forma que aquela folha: com tinta-da-china e melancolia. 

Fjögur Píanó


Fuga


Neste telhado
Cantas, pulmões, o refrão
Ao luar, cisne.

/

Talvez, se em refrões
Houver a luz de sempre,
Se viva o hoje.

/

Porque...

O princípio é
O fim de todos nós e,
Quando não me olhas,

...

Tudo isto o é
Sem norte ou maré de
Sorte. Serenei.


Alice


七コンマ九点


Sem entender para que serviam as flores, colheu uma. Julgava-se senhor dos dias e, aos seus olhos, ele poderia ser o dono das flores e do destino que lhes fosse fadado.
Serviu-se de todas aquelas cores e essências que o rodeavam e ungiu-se, criança tola. Vivia de sonhos. Mas ia vivendo. E que continuasse assim, a viver daquela sensação de lusco-fusco. A mente não se resolvia e o coração não ia pensando. Sim, porque o coração dele pensava. Oh, se pensava.

XII. Ternura

Ele tinha um daqueles nomes muito simples. Tipicamente português. Era como Manuel, ou Joaquim. Ou José.
Não interessa!
O que importa é que ele era assim, feito de simplicidade. Tanto nas palavras como nos movimentos. Não ia com muitas coisas; preferia beber água da torneira e não se preocupava com as capas dos livros.
Mas ai de quem lhe vincasse uma página!
E, ainda assim, era muito senhor de si mesmo. Queria que o mundo fosse como ele o descrevia. Queria governar o país!
Onde já se viu? Alguém tão inteligente a meter-se na política…
Ele queria mundos e fundos, no que toca a sonhos e vontades.
Ui, se queria!
Claro está, falhava. E pecava por decidir falhar sozinho. Sem pedir a alguém que lhe segurasse nas pontas enquanto desfazia os nós. Pecava (e falhava) por deitar de parte os únicos sorrisos que nunca lhe foram oferecidos de má vontade.
Vivia sozinho por negar a ternura dos braços de quem, no mundo, mais o queria abraçar.
Talvez, um dia, aquele homem de nome comum aprenda a deixar-se ser abraçado.

XI. Salada

São mimos de infância as saladas de fruta
com maracujás do jardim da vizinha e
figos, lá da figueira grande, junto ao galinheiro.

X. Moda



Conheci um músico, uma vez. Ou melhor, já houve várias vezes em que conheci músicos. Mas aquele era um músico especial. Melhor – ele era a própria música. Na altura, contou que tocava violoncelo e cantou que dava uns toques na gaita-de-foles que lhe foi passada por nome. Tocava só umas modinhas. Coisa pouca.
Conheci esse músico, dessa vez. Ou melhor, conheci-me a mim, nele.

VIII. Resposta

Hoje choveu cá dentro. Temi que fosse trovejar, mas ficaste-te por aí. Sopraste-me, no teu tão próprio acto de ser e permaneceste aí: intocável. Li o teu olhar; sabia que procuravas no meu corpo a resposta à tua indiferença fingida.
Pois, bem... Seca-te à luz até que se expire, nas areias do tempo, o tempo que precisei para deixar de precisar dessa seiva venenosa.

VII. Meninice

(Olha: é imperativo que leias este texto ao som desta música!)

Era para ser Mafalda, mas nasceu Alice de vários corações e muitas feições. Começou a caminhar cedo demais e aprendeu a falar sem que lhe pedissem.
Escrever, foi outra conversa. Começou com um A muito torto, mas lá lhe foi dando o jeito e, como quem não quer a coisa, na primavera seguinte, já andava a contar histórias inventadas por ela. Fazia castelos com livros do Winnie the Pooh e muralhas com histórias sobre bruxas e magos, princesas, maçãs e sapos. E chorava porque queria ler mais do que o que as imagens permitiam à sua imaginação e não conseguia. A Mãe sempre lhe dissera que ela deveria ser actriz – chorava quando queria.
Usava sempre blusas de bolsinhos bordados, saias laranja-abóbora, soquetes com folho rendado e as botas ortopédicas azuis-marinho; um laço nos caracóis e a pulseirinha de oiro no pulso gorducho. A pulseira que a Avó lhe tinha dado.
Passava horas a brincar com folhas de hortelã-pimenta e bolas de sabão. Tinha uma teimosia muito natural, uma pacatez quimérica muito floral e um jeito para o desenho muito próprio.
Era feita de muito.
...
Hoje, há uma casa em ruinas, de paredes cor-de-rosa. A casa da sua infância. E, pelo meio dos escombros, está a tábua da mesa da cozinha, toda rabiscada de lápis-de-cera amarelo, que era a cor que pegava melhor na madeira por envernizar.

VI. Série

She has enough pent-up sexual energy to power a small Midwestern city.

 - Angela about Brennan,
in Bones (2005)

V. Sublime






Naquela rua erma, de direcção vaga, havia uma casa em adobe, com um jardim cinzelado pela mão divina de alguém que passa o tempo entre ilusões, sorrisos e coisas doces.
Dentro da casa, os tapetes rasgados provavam isso mesmo. A sua ilusória existência. Os jogos de porcelana, cuidadosamente pintada à mão, que jaziam, quebrados, no chão, gritavam que ali o terror era enorme.
E eram tantas as palavras que ficavam por dizer, à porta daquela casa, quando as macieiras estavam em flor, que nem ele se arriscava a mostrar mais do que o jardim.
E viva na sublime mentira de sobreviver. 

IV. Nobreza





Nobreza é... É uma coroa de papel e um castelo feito de todas as pedrinhas que encontramos na calçada, decorado com todos os sonhos do Jardim Botânico.

Tag 5 perguntas

A Mel, do blog À Toa, marcou-me nesta Tag e deu-me cinco perguntas para responder.
Ainda assim, é preciso cumprir algumas regras:
- Quem nomeia deve fazer cinco perguntas ao blogger que nomeou, e as perguntas só podem ser relativas ao blog;
- Na publicação em que respondemos às perguntas, temos que deixar os links dos blogs a quem passamos a Tag;
- O blog que for desafiado deve deixar na Tag quem o desafiou;
- Devemos informar os blogs que nomeamos, e estes, devem responder no post se aceitam o desafio.


E então, a Mel foi uma querida e fez-me estas perguntas:

1. O teu blog espelha quem tu és? 
Acho que sim. Pelo menos, uma parte de mim. Talvez, a parte mais sentimental, mais melancólica. Porque a Alice animada, sorridente, que dança ao som de The Smiths e que adora almoços demorados com os amigos na pizzeria nem sempre se dá a conhecer.
Mas essencialmente, sim. O meu blog espelha a vida aos olhos de alguém que foi feito para as artes!

2. O que achas dos teus seguidores?
Sinceramente, não ligo aos seguidores. Ligo aos amigos que tenho feito por aqui, às pessoas que têm sempre uma opinião a dar, uma história em comum para partilhar, e um conselho para se fazer ouvir. E é a essas poucas pessoas que eu agradeço o apoio e as palavras nos momentos certos!

3. Qual é o assunto que mais escreves no blog?
Pff… é que não sei! Eu. Eu sou o assunto principal. Os outros temas são aquilo que me rodeia. Os meus problemas, as minhas paixões, a minha visão sobre o mundo e as coisas que mexem comigo, sejam elas artistas ou músicas, ou simples fotografias…

4. Qual é a importância que o blog tem no teu dia-a-dia?
O meu blog não é um diário. Nunca foi. Mas mentiria se dissesse que não venho cá todos os dias, várias vezes ao dia. Mesmo quando não escrevo nada (porque gosto de escrever com calma), leio os blogs que sigo (muitas vezes em silêncio, coisa que lamento, mas acho que sou demasiado tímida para comentar os outros blogs – reconheço isso em mim). Mas o meu blog é essencial para mim!

5. Pretendes permanecer na blogosfera por muito tempo?
No que depender de mim, não vou sair daqui tão cedo! Escrever define-me e eu sinto mesmo necessidade de escrever, porque liberto energias, desfaço nós e crio sonhos. Materializo-os. E isso preenche-me.


Os blogs que eu nomeio são:
- Diário de Bordo, da Jessica
- diário de bordo, da Bé


E as minhas perguntas são:
1.º: Há quanto tempo tens blog?
2.º: O que é que te levou a criar o teu blog?
3.º: O que é que te levou a dar o nome ao blog?
4.º: Partilhaste o teu blog com algum amigo ou com alguém que conheças, ou é segredo?
5.º: O que mais gostas, aqui no mundo da blogosfera?

Espero que gostem tanto de responder a estas perguntas, como que gostei de responder às da Mel, a quem agradeço mais uma vez!